Será que as pessoas ao nosso redor querem ver-nos realmente bem?
Começo este post com uma pergunta que, eu sei, deveria estar no fim e na conclusão, mas, na verdade, isto não é bem uma pergunta, é mais uma crise de epifania após ter lido alguém dizer: "Já repararam que ninguém insiste que estudemos, tenhamos uma boa carreira, cuidemos da nossa saúde e sejamos felizes com a mesma insistência com que sugerem que tenhamos filhos?" — e isso, de qualquer forma, fez um clique e fez-me pensar: é verdade.
Nunca consegui colocar por escrito tão bem algo em que já acreditava há muito tempo, mas não sabia explicar tão bem. Quando era operadora de caixa num supermercado numa aldeia, todas as minhas colegas eram mães. Quem viveu no interior sabe do que estou a falar: não há lugar em Portugal com pessoas mais quadradas do que o interior. Eu tinha ido para lá pelo contacto com a natureza e a calmaria, mas as pessoas fizeram-me sentir sufocada num mundo quadrado que nunca foi o meu.
Fui olhada como uma alienígena quando souberam que não queria ter filhos. Já estava habituada a esse sentimento, as minhas escolhas de vida deixam habitualmente as pessoas muito confusas: vegan há 10 anos, bissexual, casada com um relacionamento aberto, uma pessoa de classe média baixa e que adora fazer voluntariado pela causa animal, anti-social por escolha e por gosto.
Compreendo, isso gera perguntas, as pessoas não estão habituadas à liberdade, por mais que seja bonito dizer que sim.
Depois há o passado do qual não me envergonho, pois não tive culpa. O passado que não escondo. Eu acho que as pessoas têm que deixar de esconder as coisas porque tropeços na vida são normais e quem não os teve viveu numa redoma: filha de violência doméstica, ex-vítima de violência doméstica, mantida em cativeiro por um homem por dois anos, que me afogava em álcool (algo que nunca tolerei) até ficar em coma alcoólico e perder a consciência, violada dia sim, dia não. Tinha 23 anos e perdi dois anos da minha juventude e senti a maldade humana no auge.
Não entendem? Isto é liberdade, poder verbalizar a minha história, não a esconder. É liberdade. E quando não sentes pena de ti mesma as pessoas também não sentirão.
E eu fiquei precisamente assim, livre, desde o dia em que corri desesperada com a roupa rasgada e suja até a um posto de polícia com o meu cão ao colo a pedir ajuda. Esse foi o melhor dia da minha vida porque algo em mim despertou e mudou e prometi, desde então, que nunca mais, nunca mais iria ter vergonha de quem eu sou ou deixar de fazer absolutamente nada.
Hoje não estamos aqui para falar sobre as coisas horríveis que vivi no passado, isto só fez parte da minha reflexão para vos explicar que foi precisa uma boa dose de sofrimento para que eu fosse de facto feliz, e é por isso que tenho a consciência que, mesmo que pudesse, eu não deveria mudar absolutamente nada.
A questão dos filhos enervou-me de tal forma que já cortei muitos laços graças a essa conversa que vem sempre no mesmo tom, como um disco riscado ao longo da vida de uma mulher. Cansa, mói, cansa sobretudo quando sabemos que os nossos argumentos são válidos mas as pessoas não estão dispostas a tentar entendê-los porque simplesmente não querem.
A frase que li no X fez-me pensar: estudar, escrever, ler e descobrir sempre foram paixões minhas, sempre fui ambiciosa, sempre fui uma filha exemplar. Mas nem os meus próprios pais me incentivaram ao estudo, era a velha conversa dos filhos, toda a família. Eu acho que é uma quebra dos direitos das crianças abordarem-nos com este tema quando temos 8 anos, falar de futuros netos quando nós ainda nem iniciámos a nossa vida sexual.
Desculpem-me, mas isso deveria ser um crime, e se acham que isso não aconteceu aos vossos filhos, duvido. Comigo foi com cerca de 8 anos: “Tão linda a brincar com bonecas, um dia, Carla, ela vai dar-te um netinho e vai cuidar dele com o mesmo carinho”. O engraçado foi que, assim que a minha tia disse aquilo, larguei as bonecas de vez e transformei-me numa maria-rapaz até ter idade para trabalhar.
Eu sempre fui rebelde. Livros sempre existiram imensos lá em casa e o meu pai, que sempre foi um pouco como eu, que sempre quis dominar um pouco de tudo, tinha livros práticos, livros de medicina (até porque o meu avô era médico), romances, livros de terror, livros sobre absolutamente tudo... Eu sempre achei que o conhecimento nos dá liberdade de escolha e foi assim que comecei a ler, a informar-me sobre o que era ser mãe, sobre todo o processo, e percebi muito cedo que não queria ser mãe.
Um dia, muitos anos mais tarde, estou na casa dos pais do Bruno. A minha cunhada Joana tinha uns 10 anos e fizeram-lhe exatamente o mesmo. A diferença é que as miúdas hoje em dia desenvolvem-se em todos os níveis muito mais depressa e, em vez de brincar com bonecas ou legos, a Joana estava a ver tutoriais de maquilhagem, roupas, etc.
A minha sogra sai-se com a derradeira frase: “O tempo passa a correr, um dia é a minha mais nova que vai dar-me netos e vai ser tudo num estalar de dedos”. Antes que digam alguma coisa: eu sei que a frase não teve más intenções de todo, mas é por isso que eu penso mais do que falo. Eu e o Bruno entreolhámo-nos e achámos aquilo monstruoso.
Mais tarde tive uma conversa com a Joana: pedi-lhe que se informasse antes de ser mãe, que vivesse muito antes disso, se isso fizesse parte, um dia, dos sonhos dela, e que, sobretudo, se ela um dia fosse mãe, que o fizesse por ela e não por pressão da família. Ela agradeceu-me e anuiu.
Eu cuidei dos meus irmãos, ajudei a minha mãe em tudo o que pude. A minha mãe é a pessoa que eu mais amo nesta vida, a pessoa em que mais me espelho, e não me arrependo de absolutamente nada que tenha feito por ela. Eu lembro-me de pegar no Miguel ao colo e adormecê-lo, e de sentir paz, de adorar fazê-lo. Tenho saudades do cheiro dele no meu colo, tenho saudades de dar comida à boca da minha irmã, de mudar-lhe as fraldas.
Eu adorava fazer todas essas coisas e prescindi de brincadeiras, de namoricos e paixonetas ou tardes passadas com amigos porque, de facto, eu adorava cuidar dos meus irmãos. A questão aqui é que eu sei exatamente o que envolve cuidar de uma criança — e não quero. Eu passei noites em branco e amparei os choros da minha mãe de completa exaustão.
E não, eu não estou traumatizada. Eu dava tudo para voltar a esse tempo. Eu apenas NÃO quero ser mãe.
Eu cresci rápido. Aos 8 anos já sabia cozinhar, cuidar de bebés, limpar a casa, já sabia sobre os perigos que existiam lá fora e já tinha conversas de gente adulta com a minha mãe. Foram essas conversas com a mulher mais especial deste mundo que me tornaram no ser humano que sou hoje: empático, às vezes até demais.
Fui eu que estive à porta da maternidade desesperada por ver a minha mãe, que quase morreu a ter o Miguel, e chorei em prantos porque não a queria perder. Fui eu que a vi naquele estado, cansada, desfeita, mas sempre com amor para mim.
E sobre a experiência com a maternidade, eu só não pari, mas eu senti cada sensação, cada momento da criação dos meus irmãos com ela. Por isso é que fico revoltada quando as pessoas dizem-me que eu não sei o que é amor incondicional só porque não sou mãe. Porque sim, para além de as pessoas quererem forçar-nos maternidade goela abaixo, ainda nos querem reduzir, ainda comparam amores.
E eu tenho para mim que quem sabe o que é amor não o compara com nada, porque amor é amor.
Eu não quero ter filhos, mas quero estar disponível para cuidar da minha mãe se ela precisar — e não é porque sinta que isso seja a minha obrigação, mas porque eu amo a minha mãe e quero aquela mulher gigante, que me lembra que ainda existe bem no mundo, na minha vida. Porque a minha mãe alegra os meus dias.
Digo isto com a mesma leveza de quem diz que não cuidará do pai, que não cuidará do irmão. E julguem-me, go ahead, eu estou habituada. Mas se estão dispostos a julgar-me, passem como eu 16 anos da vossa vida a ser espancada todos os dias, a ver a vossa mãe ser espancada todos os dias, vejam o ódio do vosso pai nos olhos dele todos os dias, cheguem ao limite e, depois de anos de terapia para curar feridas que sempre estarão lá, perguntem-se então se seriam capazes de cuidar do homem que vos fez perder a vontade de viver por tanto tempo.
Voltando ao tópico original (eu desvio-me muito, eu sei, desculpem): falava nas minhas colegas de supermercado porque, das piores coisas que me fizeram para tentar enfiar-me maternidade goela abaixo, foi mentir. E foi assim que comecei a perguntar-me até que ponto as pessoas queriam-me bem.
Ironicamente, até hoje gosto muito da Isabel, mas sei que ela não é feliz e por isso consigo tolerar as atitudes dela enquanto fui colega dela. A Isabel tinha acabado de ser mãe quando a conheci. Eu gostei logo dela: sorriso sempre no rosto, tolerante, empática, algo que hoje em dia falta em doses cavalares às pessoas.
A Isabel tinha sempre um sorriso cansado, mas sorria-nos e nunca descontava os problemas dela em ninguém. Antes de saber que eu não queria ser mãe, a Isabel contava-me tudo: sobre os problemas de saúde depois da maternidade, sobre os problemas com o marido, as noites mal dormidas, a exaustão...
Quando disse que não queria ser mãe ela não me julgou, mas sei que acreditou que os desabafos dela tinham tido influência sobre a minha decisão.
A Isabel não me conhecia bem o suficiente ainda para entender que eu nunca fui uma pessoa influenciável e sempre fui atrás das coisas que queria, por mais difíceis que elas fossem, e portanto, se ser mãe fosse um sonho meu, eu teria trabalhado afincadamente para poder colocar uma criança no mundo.
Depois de contar que não queria ser mãe, a Isabel começou a esconder-me absolutamente tudo, inclusive o doloroso que eram as varizes que ela tinha desde a maternidade na zona genital e que lhe causavam tantas dores. Eu ficava a saber sempre por outras pessoas.
Em vez de desabafar, a Isabel começou a romantizar a maternidade. Ela desabafava com as minhas colegas e comigo floreava tudo.
E foi assim que eu e a Isabel fomos-nos afastando, porque já não havia verdade entre uma amizade que estava a ser tão boa enquanto durou. Isso fez-me questionar até que ponto a maioria de nós foi submetida a tamanha lavagem cerebral que acreditamos que, acima de todas as coisas, devemos ser mães, sob pena de perder o nosso título de mulher...
Como se qualquer zé nos atribuísse o título de mulheres e ele não nos fosse inato, independentemente de sermos mães, já que sermos mulheres deveria ser algo incontestável.
E é aqui que vem a velha questão: a minha própria família foi contra eu fazer a faculdade, contra eu estudar e formar-me, contra eu ser ambiciosa e querer uma carreira. Toda a minha vida fui julgada pelo meu aspeto de miúda, que fazia com que as pessoas pensassem que a minha cabeça era moldável o suficiente para me fazerem mudar de ideias.
Toda a minha vida a conversa da maternidade... Tantas vezes gritei, perdi a paciência, perdi as estribeiras, fui mal-educada, passei-me por completo porque os anos acumulavam-se e a falta de paciência para a estupidez humana foi-se juntando a isso em crescendo até chegar aos dias de hoje sem admitir que absolutamente ninguém questione as minhas decisões ou se sinta no direito de opinar sobre as mesmas.
A questão aqui é: mas alguma dessas pessoas queria realmente o meu bem?